TRILOGIA DE APU, de Satyajit Ray, (ÍNDIA) (1956-1959)
TRILOGIA DE APU (1956-1959), de Satyajit Ray, ÍNDIA
1ª PARTE - "Pather Panchali" (A Balada da Estrada) (1953)
O primeiro dos filmes da famosa "Trilogia Apu", uma das obras-primas da cinematografia mundial, presente em quase todas as listas dos melhores filmes de sempre. Premiado com a Palma de Ouro em Cannes, em 1955.
Para mim será, juntamente com os outros dois que constituem a trilogia que tem o nome do seu principal personagem – Apu, dos mais belos filmes de sempre, e por vezes tão emocionantes, por nos fazerem lembrar a realidade que nos cerca, e, às vezes, a nossa própria, que não se conseguem ver sem que um nó nos aperte a garganta.
Não vos vou recontar a história, apenas lembrar que o primeiro filme fala da infância de Apu, um garoto nascido numa remota aldeia da província de Bengala, que vive com os pais muito pobres – Sarbajaya, a mãe, e Harihar, o pai (que à noite escreve peças de teatro, depois do trabalho mal pago, ou nem isso, porque lhe ficam a dever salários em atraso, que tem receio de reclamar por temer que o despeçam), com a irmã um pouco mais velha, Durga, e uma tia avó muito idosa, e narra-nos o início da difícil aprendizagem da vida em tais circunstâncias, e terminando este episódio com a partida de Apu com os pais, depois da morte da irmã e da tia, para Benares.
Cinematograficamente muito belo, por vezes de um lirismo extremo, a que a música do grande compositor indiano Ravi Shankar sublinha admiravelmente, utiliza com mestria a elipse (o nascimento de Apu, a morte de Durga, por exemplo) sem que se perca a continuidade da narração, como muito bem acentua José Manuel Costa, na respectiva folha da Cinemateca.
Existem momentos no filme, repito, dos mais belos da história do cinema – a cena da corrida dos dois miúdos através dos campos para verem passar o comboio, a passagem pela aldeia do vendedor de guloseimas, a tempestade, o regresso do pai, a cena em que Apu encontra o colar desaparecido. Para isso também contribui e muito a excepcional interpretação, em especial das duas figuras femininas principais – Sarbajaya (a mãe) e Durga (a filha), que são aliás as figuras nucleares deste primeiro capítulo da história de Apu. ("A primeira é o início da atenção privilegiada de Ray à mulher "no casal" – tema dele, tema indiano e tema oriental – através duma personagem que é já o reduto mais sólido de nobreza familiar", José Manuel Costa, na Folha da Cinemateca).
Só para finalizar lembrar que Satyajit Ray (1921-1992), nascido em Calcutá, viria a iniciar o seu percurso no cinema como colaborador de outro grande mestre, Jean Renoir, na preparação de outra obra prima de sempre "The River" (O Rio Sagrado), que o cineasta francês filmou também em Calcutá.
Muito mais tarde, em fim de carreira, Ray haveria de filmar, como sempre magistralmente, "A Casa e o Mundo", baseado no famoso e inesquecível romance homónimo do grande escritor indiano Rabindranath Tagore, filme que teve exibição comercial em Portugal (e então vimos) mas que passou aqui quase ignorado!...
Os dois filmes que completam a Trilogia Apu, e ainda se possível superiores a este, vão ser exibidos este mês na cinemateca (a 16 e 23), mas também legendados em francês!...
2ªPARTE - “Aparajito” (O Invicto) (1956)
A segunda parte da obra prima “Trilogia de Apu”, descreve a passagem de Apu da infância à adolescência. Não quero contar agora a história, apenas lembrar que a trilogia encerrará no dia 23 no mesmo local.
Mas não se pode deixar de salientar a emoção com que se assiste a este belíssimo filme do grande mestre indiano, ainda hoje, cinquenta anos depois, e com tanto o que se passou entretanto na história do mundo, num século (o XX) riquíssimo de acontecimentos determinantes na história da Humanidade, com enormes avanços (e também recuos) em todos os aspectos.
Contado com a serenidade que só os grandes criadores conseguem, sem imagens a mais, apenas o necessário para transmitir de uma maneira extremamente bela e comovente a história deste jovem num país imenso, de uma cultura e sabedoria milenares, mas cheio de contradições, de enormes desigualdades sociais, que persistem apesar dos esforços de muitos para as minorar.
Há meia dúzia de cenas neste filme que, pela sua grandeza, pela sua beleza, apesar de trágicas, fazem parte do nosso imaginário. A delicadeza que ressalta do pagamento dos fiéis que acompanham as pregações do pai, em Benares; a morte deste, uma vez mais dada elipticamente; a longa espera da mãe (essa admirável actriz, e muito bela diga-se de passagem, Karuna Bannerjee (1919-2001) (em Sabojaya Ray), que trabalhou com Satyajit Ray mas também com outro grande cineasta indiano Mrinal Sen, entre outros), mãe que, já muito doente, espera pelo filho, vindo de Calcutá onde trabalha e estuda, mas que o comboio que passa ao longe não trará dessa que será para si a última vez. Virá por fim, ao saber da mãe doente, mas tarde demais, outro momento admiravelmente representado e comovente.
Apu voltará desta vez irremediavelmente só para Calcutá, para estudar e trabalhar. A aprendizagem da vida, as etapas da infância e da adolescência, marcadas por trágicos acontecimentos - a morte dos entes mais próximos e mais amados – a irmã, os pais, a mãe em especial, está ultrapassada. Agora Apu regressa só à grande urbe, Calcutá, para enfrentar a nova etapa, a da passagem à idade adulta, começando pela aquisição do conhecimento, tão querida ao cineasta.
Repito: filme parte de uma obra cimeira da Arte do século XX.
3ªPARTE - Apu Sansar (O mundo de Apu) (1959)
A última parte desta obra-prima, que não nos cansamos de rever, pela mestria como está feita, abarcando a vida, do nascimento à idade adulta, do jovem Apu, nascido na província de Bengala, Índia,
A difícil aprendizagem da existência, através de uma vida, por vezes cheia de provações e desgostos – a morte de todos os seres mais amados, no final só restando um, Kajal, filho de Apu e Aparna, a esposa falecida de parto -, de esperanças que não se conseguem realizar, de algumas realizações pessoais, que são no entanto importantíssimas, como a aquisição do conhecimento.
O cineasta consegue fazer-nos sentir as personagens, por vezes de uma maneira quase dolorosa e muitas vezes comovente. Porque corresponde em última análise à natureza humana tal como a sentimos, dentro de nós ou ao nosso redor.
Sobre os grandes sentimentos e a dignidade do Homem. Trágico mas não pessimista, porque o final se abre a todas as possibilidades, quando pai e filho, regressam finalmente juntos a Calcutá. Aliás o difícil reencontro entre Apu e o filho, que encerra a obra, é uma das suas sequências mais admiráveis.
Esteticamente muito belo, excepcional em termos de linguagem, admiravelmente interpretado. E não pode deixar de ser citada a música de Ravi Shankar.
Obra-prima absoluta, que está na lista reduzida das obras que mais admiro.
(vista obra na Cinemateca Portuguesa e escritos os textos em 2006)

Comentários
Enviar um comentário