O MILAGRE SEGUNDO SALOMÉ, de Mário Barroso (2004)
Milagre Segundo Salomé (O) (2004), de Mário Barroso (POR)
Um filme feito por um homem culto, Mário Barroso, que viu decerto muito cinema e gosta da Sétima Arte, e que na sua primeira obra como realizador (foi director de fotografia de algumas das grandes obras do cinema português, de Manuel de Oliveira, João César Monteiro (“Vai e Vem”) e José Fonseca e Costa (“Kilas, O Mau da Fita”) adaptou, embora sem grande fidelidade, mas magnificamente, um dos grandes escritores portugueses – José Rodrigues Miguéis. Aliás o realizador afirmou, em entrevistas, que adaptação fiel da obra seria economicamente incomportável para o cinema português.
O resultado é mesmo assim excelente. Muito acima da média do cinema estrangeiro que vemos por cá (e algum até incensado pela crítica que temos...). Este filme é um bom exemplo do cinema para o grande público, que podíamos ter e infelizmente não temos. Por falta de profissionalismo, talvez, e de cultura, também, evidentemente. Magnífica direcção de actores, levando Nicolau Breyner, Ana Padrão e Paulo Pires ao nível do seu melhor, mas não esquecer as promissoras caras novas, muito em especial Ana Bandeira, magnífica na protagonista. Quanto ao argumento tem, apesar das limitações da adaptação, a marca e a inteligência do grande escritor que muito apreciamos, José Rodrigues Miguéis, sobre um período conturbado da vida portuguesa, a República à beira do primeiro golpe de cariz fascizante, o de Sidónio Pais.
A leitura recente de dois excelentes e interessantes artigos sobre o filme – Tito Lívio, no Notícias da Amadora”, de 3jun04, e Teresa Martins Marques, no “JL”, de 26mai04, publicados em dois órgãos de indiscutível referência (ao contrário de outros que assim se auto-intitulam) na comunicação social deste país – voltou a pôr-me a questão da adaptação ao cinema de grandes obras literárias.
É que, ambos os críticos, têm, apesar de alguma contradição nas conclusões – para Tito Lívio o filme é uma das melhores obras do cinema português dos últimos anos, enquanto para Teresa MM é quase apenas um “bonito filme” – as suas razões.
E no entanto, eu, que sou um admirador da obra de Miguéis, desde que, ainda na adolescência, a comecei a ler, considerando-o um dos nossos maiores escritores de sempre, consegui “ver” no filme (como Tito Lívio, aliás) o espírito do romancista.
Penso que, mais que a trajectória das personagens e respectivo final, com ou sem happy-end (como no filme), o mais interessante é o retrato duma época conturbada da vida portuguesa, prenunciadora do choco do “ovo da serpente”, que nos havia de arrastar para uma ditadura fascista de cinquenta anos.
Gabriel morre no filme, assassinado pelo tenente partidário de Sidónio. No romance o personagem tem outra dimensão, porque já vem detrás, na obra do escritor, e virá forçosamente a simbolizar a Resistência ao regime de extrema-direita que se aproxima. Por isso não pode morrer.
Que o filme conseguiu retratar este momento histórico é, em minha opinião, indiscutível. E fê-lo duma forma inteligente e culta, o que, diga-se de passagem, é de facto raro, num cinema, pelas suas características, destinado ao grande público. A propósito lembro a tentativa, falhada, de Eduardo Geada, de adaptar José Rodrigues Miguéis, em “Saudades para Dona Genciana”.
E para terminar um conselho aos amigos. Não percam este magnífico filme. E depois me dirão se tenho ou não razão. ****
Fonte Nova, 14mai05

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