O DELFIM, de Fernando Lopes / adaptação de Vasco Pulido Valente, (2002)

Delfim (O), de Fernando Lopes / adaptação de Vasco Pulido Valente (POR 2002) 

Visto outro dia numa sessão de cineclube de uma universidade, em que o único espectador era eu... Como é possível? A cultura não interessa aos estudantes universitários? Ou falha a sua divulgação? Afinal tratava-se da adaptação ao cinema, embora algo decepcionante, de uma obra-prima do romance português – “O Delfim”, de José Cardoso Pires (1968), realizada por um dos grandes cineastas portugueses – Fernando Lopes. 



Apesar de toda a minha cinefilia (embora modesta), confesso que o filme, em minha opinião, não chega aos calcanhares do romance. 

Claro que não era fácil transcrever para imagens a densidade e a beleza do discurso de José Cardoso Pires. E a Fernando Lopes (de que gostamos tanto noutras obras – “Belarmino”, “Uma Abelha na Chuva”, adaptação de uma obra-prima, essa de outro grande nome da literatura portuguesa - Carlos de Oliveira) faltou, desta vez, o golpe de asa que permitisse a transfiguração de uma arte noutra, mantendo o cerne da obra. 

Os belíssimos planos, muito pensados, do cineasta, aparecem de novo em “O Delfim”, aliás como noutras obras do cineasta, como excepcionais nacos de cinema, mas quase se bastam a si próprios. A longa narração do caçador-escritor no romance não tem correspondência, a meu ver, no filme. A adaptação da obra-prima de Cardoso Pires falha, porque não consegue transmitir o essencial.

Li algures que foi como se tivesse sido descarnada a obra do José Cardoso Pires e deixado só o seu esqueleto, e sobre ele construíram o filme. Será um pouco isso. Mas não é nos ossos que está o principal e mais interessante do romance. Para mim é no resto, isto é, nas reflexões do narrador sobre as personagens e os acontecimentos. 

E, por razões das respectivas visões da sociedade, o escritor é muito mais contundente, impiedoso e satírico, na descrição de uma mentalidade comum entre os poderosos da época – anos 60, em pleno fascismo, mas que parece assustadoramente ressurgir nos tempos actuais, embora faltando aos novos candidatos a marialvas o poder absoluto que lhes permitiria, nos “bons” velhos tempos, ser paternalistas (e, às vezes, cultos)...

O engenheiro (agrónomo) Tomás Manuel, herdeiro da família Palma Bravo, os donos da Lagoa desde tempos imemoriais, amo e senhor (paternalista) daqueles sítios e gentes, casado com D. Maria das Mercês, cujo lugar é o lar, aguardando o marido, marialva, que sempre que pode se desloca a velocidades loucas no seu jaguar, e se faz acompanhar do servo (preto ao contrário do patrão que é branco, daí o racismo latente que contra ele se esboça, não só por ser o lacaio do senhor da Lagoa) e do casal de mastins. Eis as principais personagens do drama que se vai abater sobre os senhores da Lagoa. Sobre ele o escritor/caçador investiga e reflecte, traçando um retrato asfixiante do país rural dos anos sessenta.

Com receio de me ter enganado na avaliação do filme, fui depois reler o romance. Confesso que, para mim, as imagens construídas a partir das palavras de Cardoso Pires continuam a sobrepor-se às imagens de Fernando Lopes... 

Quanto ao cineasta viria a insistir no personagem Palma Bravo, embora sob outro nome – José Maria Cristiano, corretor da bolsa - adaptando-o à realidade portuguesa do início do século XXI, no seu último e excelente filme - “Lá Fora”, que consideramos superior a “O Delfim”. Mérito do argumentista (o também crítico de cinema João Lopes) ? 

Os actores são magníficos, com especial destaque para o par Alexandra Lencastre / Rogério Samora, que aliás o cineasta viria a ter de novo em “Lá Fora”. **

Frases (de uma obra-prima da nossa literatura) :

“Nenhum, já disse. Para pêgas não sei tocar.” Parece levar a sério a comédia que ele próprio tinha ajudado a montar.

Vai pôr a guitarra em cima das pipas e volta de boca descaída, enojado.

“Conversa. Todos vocês detestam o fado.”

“Vocês, quem?”

“Tu e os teus escritores. Só me falta que também sejas comunista.”

“O Delfim”, de José Cardoso Pires (1968), diálogo entre Tomás Manuel Palma Bravo, engenheiro-agrónomo, marialva e dono da Lagoa, na Gafeira., e o narrador, caçador/escritor (edição Moraes Editora, Maio de 1968) (diálogo que foi cortado no filme).

cine-clube do ISPA, 24mai05

UMA ADENDA - FRASES SOBRE CINEMA (e não só...), lidas algures

1. 

“O Oliveira (Manoel de) é uma mistificação para provincianos.” Vasco Pulido Valente, entre outros disparates do mesmo jaez, em entrevista à revista Visão, 5mai05

comentário: eis o tipo de afirmação que os fãs da “Quinta” e quejandos apoiarão sem reticências... Estupidez ou grau de alcoolémia elevado do articulista?

(*) “Reality show” transmitido pelo canal de televisão TVI, programa reconhecido pela sua total mediocridade, a que se costuma designar por lixo televisivo…

(...)


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IL SECRETO DE SUS OJOS (O Segredo dos Seus Olhos), Juan José Camapanella (ARG - 2009)