DOM QUIXOTE, de Miguel de Cervantes, encenado por Armando Caldas, para o Intervalo Grupo de Teatro (2017)
DOM QUIXOTE, de Miguel de Cervantes, encenação de Armando Caldas, Intervalo Grupo de Teatro
Foi em 2005 que o Intervalo Grupo de Teatro estreou a sua adaptação do Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), cuja primeira parte da famosa obra foi publicada em 1605 e a segunda apenas em 1616.
Este espectáculo foi então um grande sucesso de público e de crítica estando cerca de um ano em cena (ler magníficos textos, nomeadamente de Maria Helena Serôdio, Maria Elvira Seixo, Francisco Faraldo e Correia da Fonseca, entre outros, na folha de sessão e no respectivo programa, este sempre com muito que ler).
É essa encenação de Armando Caldas, interpretada por Miguel Almeida (Dom Quixote) e Helder Anacleto (Sancho Pança) nos principais papéis, que agora é reposta.
Gostaria muito de conseguir transmitir a quem me lê quanto gostei desta adaptação do Intervalo, que se baseou principalmente no projecto de Orson Welles (1915-1985), que durou uma vida inteira e que ele não chegou infelizmente a concluir, mas de que existem documentos e testemunhos e na peça do nosso António José da Silva (O Judeu) (1705-1739), um dos grandes nomes do nosso teatro, que foi queimado com apenas 34 anos (!) nas fogueiras da santa inquisição.
Gostaria de citar ainda, do cinema, o famoso filme "Don Kikhot" (1957) de um cineasta soviético, Grigori Kozintsev (1905-1973), que nos anos 60 vimos nos cineclubes, onde era exibido, discutido e admirado.
E, obviamente, a obra literária, obra-prima, de que agora ando a ler a tradução (1959) do grande Aquilino Ribeiro (1885-1963), ela própria motivo de grande prazer. De Cervantes diz Aquilino: "o simpático e liberal senhor Miguel Cervantes, tão perto de nós escritores, proletário como nós, plebeu, embora andassem afanosamente à cata dos seus avoengos fidalgos, inconformista como o somos na maioria! Tão igual a Camões em tudo, no génio, no infortúnio, nos aleijões da guerra, na invalidez, que parecem dois filhos gémeos da macaca. Além disso, cheio de ânsia, com os olhos no ideal, louco, fantasiador, desesperado, perigoso, batido por todas as contradições de uma inteligência proteica."
O que Armando Caldas e os magníficos actores do Intervalo nos conseguiram trazer para o palco foi todo um humanismo e a revolta contra as injustiças de que é vítima a maioria dos seres humanos, à mão da minoria de poderosos, por força do dinheiro, da exploração, da opressão.
É o que Cervantes nos diz através do seu Dom Quixote, num retrato simultaneamente cómico e trágico, de luta permanente, da nossa condição humana, com todas as suas fraquezas e grandezas, mas eternamente revoltada contra o que não é justo. Mesmo que às vezes os lobos nos surjam disfarçados com pele de cordeiro ou que pareçam ao longe meros e inocentes moinhos de vento.
"O sonho comanda a vida", é bem verdade, como afirmou o Poeta, e pouco a pouco tem vindo muitas vezes a tornar-se realidade, ainda que depois surjam novos retrocessos, porque a luta entre os que nada têm, ou têm muito pouco, e os que têm tudo, ou quase tudo, não cessará jamais enquanto a justiça e a igualdade não vencerem.
O Dom Quixote, de Cervantes, acaba vencido mas a luta dos que sonham com um mundo melhor continuará sempre. Mesmo que alguns de entre nós sejam como Sancho, bons mas crédulos, assustadiços e medrosos, querendo refugiar-se na ideia de que nada pode ser mudado pelos seres humanos, e por isso lhes resta serem interesseiros, só lutando quando nada mais resta a fazer para salvar a pele.
Há nesta dramatização uma dúzia de cenas cheias de força e simbolismo. Entre elas está a que narra o encontro de Dom Quixote com os senhores poderosos, as suas damas e os hipócritas conselheiros e confessores, os representantes religiosos. Desprezam, troçam, desconsideram o cavaleiro andante, Dom Quixote, e o seu escudeiro, Sancho, com a arrogância dos convencidos da sua importância e impunidade. Quem não passou já por isso?
Um dia, porém, "chegará o dia de todas as surpresas".
(visto no Auditório Lourdes Norberto, em 28-Mai-2017)
HOMENAGEM AO INTERVALO GRUPO DE TEATRO
OBRIGADO, INTERVALO !
Quando as representações de "Dom Quixote", o último grande sucesso do INTERVALO GRUPO DE TEATRO, estão a chegar ao fim, queria manifestar a minha gratidão como espectador das belíssimas encenações e representações deste grupo a que assisti ultimamente, mas nunca esquecendo o longo trabalho de qualidade que ele vem fazendo desde os anos 60 do século passado, sempre sob a direcção do grande homem de teatro, encenador e actor, que é o Armando Caldas.
Entre as quais é justo destacar "Ratos e Homens", "Doze Homens em Fúria", "Sonho de uma Noite de Verão" e "Dom Quixote".
Não vou referir agora qual o meu favorito, dizer apenas que foram grandes espectáculos, admiravelmente encenados e interpretados. Pela elevadíssima tensão dramática que quase todos eles conseguiram criar num público habituado a ver muito e bom teatro, neste palco e noutros do nosso País, com as melhores companhias que temos e felizmente são bastantes, reitero a ideia de que alguns deles mereciam ser representados noutros palcos, para maiores assistências.
Por iniciativa de um amigo, o programa da representação do "Dom Quixote" foi autografado pelos actores presentes, num dia em que por doença não pude estar presente. Como espectador agradeço com emoção o gesto e será mais um dos autógrafos que tenho (e não são muitos porque só os peço quanto admiro os autores), este até com um especial simbolismo, que muito aprecio, porque é colectivo! E duma companhia em que o colectivo não é palavra vã!
Obrigado Miguel Almeida, Hélder Anacleto, Fernando Tavares Marques, Fernando Dias, João Pinho, João José Castro, Adriana Rocha, Rita Bicho, Miguel Partidário, Pedro Beirão, Dina Santos, Cristina Miranda, Luís Herlander, Pedro Pinto, Dulce Moreira, Fátima Morais, Carlos Paiva e Armando Caldas. (espero não me ter esquecido de ninguém deste magnífico "Dom Quixote"... mas se me esqueci, peço desculpa)
Sobre os espectáculos citados deixo excertos dos modestos textos que a propósito deles escrevi para informar os amigos.
RATOS E HOMENS, de John Steinbeck
(...) Na história que Steinbeck criou, o final é um libelo, não contra o trabalhador que só quer defender o companheiro até ao fim, mas contra a sociedade que cria condições para que a tragédia possa acontecer. Mas também sabemos como às vezes os mais miseráveis e despolitizados se tornam injustos e cruéis para os seus semelhantes, principalmente contra os que são mais fracos que eles. O pior e o melhor do ser humano vêm ao de cima nas grandes crises. Steinbeck conseguiu fazer-nos sentir isso e esta belíssima adaptação ao teatro ainda mais. Pondo em confronto os sonhos daqueles homens, de um mundo mais justo e melhor para todos e a realidade cruel de exploração e miséria para a grande maioria. Julgo que foi por isso que outro dia, quando fui ver a peça, a tensão dramática subiu a níveis tão raros que a emoção se instalou no palco e na plateia quando o espectáculo terminou. Isso é grande teatro em qualquer parte do mundo!
12 HOMENS EM FÚRIA, de Reginald Rose
(...) É um microcosmos humano que Reginald Rose no fundo cria entre aqueles 12 homens e nenhum de nós, penso, deixará de o sentir, nele se revendo, por bons ou maus motivos. No fundo é nisso que reside a intemporalidade desta magnífica obra e se nos emocionamos, eu diria quase até às lágrimas, é por vermos que desta vez a inteligência e o humanismo derrotam a ignorância, o desespero acéfalo, a violência dos que não têm outro argumento.
Eu só posso sugerir que não falhem mais este grande e belo espectáculo do Intervalo Grupo de Teatro, com uma direcção de actores que temos que reconhecer magnífica, aliás como habitualmente naquela casa.
SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO, de William Shakespeare
(...) Depois de Molière, de Corneille e de outros, chega agora, de novo, uns anos depois, a adaptação do famoso "Um Sonho de uma Noite de Verão" (A Midnight Summer's Dream), de William Shakespeare.
E é excelente, este espectáculo que adapta uma das mais inocentes peças do genial dramaturgo inglês, ou talvez não, em que os maus sentimentos estão praticamente ausentes, tirando uns ciúmes, umas vilanias menores, um pai prepotente e principalmente as confusões que os "deuses" armam para delas tirar proveito...
Manuel Jerónimo, actor e encenador que já conhecíamos de trabalhos anteriores, magníficos, adaptou o texto e encenou-o.
O resultado, volto a afirmá-lo, é encantatório, fazendo-nos por vezes sorrir, rir e até rir muito, com as peripécias da acção.
E tudo acaba em bem, com excepção da peça dentro da peça, com que termina a comédia, tal como no original, e que é por vezes irresistivelmente cómica.
DOM QUIXOTE, de Miguel de Cervantes
(...) O Dom Quixote, de Cervantes, acaba vencido mas a luta dos que sonham com um mundo melhor continuará sempre. Mesmo que alguns de entre nós sejam como Sancho, bons mas crédulos, assustadiços e medrosos, querendo refugiar-se na ideia de que nada pode ser mudado pelos seres humanos, e por isso lhes resta serem interesseiros, só lutando quando nada mais resta a fazer para salvar a pele.
Há nesta dramatização uma dúzia de cenas cheias de força e simbolismo. Entre elas está a que narra o encontro de Dom Quixote com os senhores poderosos, as suas damas e os hipócritas conselheiros e confessores, os representantes religiosos. Desprezam, troçam, desconsideram o cavaleiro andante, Dom Quixote, e o seu escudeiro, Sancho, com a arrogância dos convencidos da sua importância e impunidade. Quem não passou já por isso?
Um dia, porém, "chegará o dia de todas as surpresas".
Lisboa, 26-Out-2017
Egas


Comentários
Enviar um comentário